Grupo pode ter cooptado 146 clientes para fraude do césio-137
A Polícia Civil encontrou com a advogada Ana Laura Pereira Marques, de 28 anos, ao menos 146 procurações autorizando ela a entrar na Justiça para cobrar isenções de imposto de renda (IR) por conta de supostas doenças graves causadas pelo acidente do césio-137, ocorrido em 1987, em Goiânia. O material foi apreendido na Operação Fraude Radioativa, deflagrada em 27 de setembro , pelo Grupo de Repressão a Roubo da Delegacia Estadual de Investigação de Crimes (Garra/Deic), para apurar um esquema de fraude para obtenção de benefícios voltados para falsas vítimas do acidente radiológico, a maioria oficiais de reserva da Polícia Militar.
Ao todo, foram localizadas 503 procurações para Ana Laura ou em nome de advogados que "alugavam" o nome para que ela pudesse entrar com as ações judiciais. Entretanto, no relatório final do delegado Leonardo Dias Pires, apenas as 146 são diretamente relacionadas à suposta fraude envolvendo o acidente do césio-137. No documento enviado ao Judiciário, consta que outras 178 seriam para "ajuizar ações referentes à isenção de imposto de renda retido na fonte" e mais 179 "concedendo poderes à investigada", sem mais especificações.
Um levantamento inicial do Garra/Deic e da Procuradoria Geral do Estado (PGE) identificou 49 oficiais da reserva da Polícia Militar do Estado de Goiás (PM-GO) representados por algum dos investigados com o intuito de serem beneficiados na fraude. O esquema consistia principalmente na falsificação de laudos médicos para comprovar que a pessoa teria alguma doença grave em consequência do trabalho durante o período do acidente radiológico, o que daria direito à isenção de IR. Destes, a Polícia Civil descobriu que 27 conseguiram ao menos uma liminar favorável.
Mais nomes envolvidos
O relatório final aponta que o esquema pode ser maior do que o identificado inicialmente pela Polícia Civil. Ao todo foram indiciadas sete pessoas, sendo Ana Laura e mais duas por crimes relacionados à fraude em si e o restante por ter cedido à advogada o acesso deles por meio de um token ao sistema eletrônico do Judiciário para entrar com processos. O documento também mostra que a participação da advogada Gabriela Nunes Silva, de 23 anos, que chegou a ser presa na época da operação, seria menor no esquema do que a Polícia Civil imaginava.
O esquema seria liderado por Ana Laura, com a ajuda do subtenente da PM na reserva Ronaldo Santana Cunha, de 56 anos, que era responsável pela captação dos clientes. Junto a eles foi indiciada a advogada Izabella Devoti, de 28 anos, que teria conhecimento das fraudes e colaborava na elaboração das petições e no atendimento dos clientes. Os três foram indiciados por associação criminosa e estelionato de forma consumada em 27 casos e de forma tentada em outros 21.
Outros quatro advogados foram indiciados pelo crime de falsa identidade, entre eles, Gabriela, na modalidade de coautoria por fornecerem uma ferramenta (token) que permitia Ana Paula ingressar com as ações na Justiça se passando por estas pessoas. Cada um recebia um pagamento mensal de R$ 1 mil a R$ 2 mil pelo "aluguel", mas não participavam da elaboração e acompanhamento das ações que a advogada protocolava. O delegado cita mais quatro pessoas no relatório, mas pede a abertura de um inquérito complementar para apurar o real envolvimento delas com o grupo.
O material apreendido durante a operação em setembro permitiu que a Polícia Civil aprofundasse mais sobre o esquema. Descobriu-se por exemplo que Ana Laura usava os tokens dos outros advogados para protocolar ações de clientes que tiveram decisões desfavoráveis quando foi ela a autora dos processos. Ela entrava, inclusive, com novas ações em comarcas diferentes, usando comprovantes de endereço falsificados dos clientes. Um dos casos citados envolve 15 ações distintas para uma mesma pessoa até que fosse concedida uma tutela de urgência favorável ao benefício.
Novos detalhes
Além dos oficiais da PM na reserva, a Polícia Civil apurou que Ana Laura e Ronaldo trabalhavam para captar clientes entre os bombeiros na reserva e que o subtenente articulava com a advogada e também com Izabella a expansão das ações no Tocantins. O material aprendido sugere o envolvimento de uma outra pessoa nas articulações de Ana Laura, principalmente na captação de tokens de outros advogados, e há sugestão de haver mais tokens usados. Pelos diálogos encontrados nos aparelhos celulares dos acusados, dá-se a entender que o uso de tokens alheios vinha desde 2022.
Os clientes de Ana Laura não foram indiciados pela Polícia Civil. As investigações apontam que nem todos sabiam ou tinham participação direta das fraudes. Nas conversas captadas durante a investigação, também são citados profissionais de saúde supostamente envolvidos na realização dos exames clínicos, mas sem que seja apresentada uma conclusão sobre a participação deles no esquema.
Em um dos diálogos citados no processo, Izabella chama um cliente ao escritório de advocacia para fazer um exame que "mede a taxa de césio no organismo". Nesta conversa, ela destaca que todos os exames costumam constatar índice elevado de contaminação e que o próprio escritório arcará com o custo. Para o mesmo cliente, em outra mensagem, ela diz para a pessoa levar o laudo de um problema de saúde que ele teria ao escritório que um médico atestaria o nexo de causalidade da enfermidade com o césio.
Foram encontrados nos locais de busca e apreensão uma "grande quantidade" de embalagens plásticas do tipo zip lock acompanhadas de envelopes e formulários em branco de um laboratório, o que, segundo a polícia, indica que o "material era efetivamente coletado no escritório de Ana Laura".
O celular apreendido de Ana Laura, por ser novo, tinha mensagens de aplicativo a partir de 13 de setembro, ou seja, duas semanas antes da operação deflagrada. Porém, nos aparelhos dos outros investigados, a polícia encontrou recados dela, como dois deles em que a advogada pede para a pessoa ver com um terceiro se pode indicar "alguém do bombeiro que seja comunicativo, de preferência esteja na reserva e tenha interesse de ganhar um din din" e comenta depois que "bombeiro é melhor de mexer do que PM".
As conversas encontradas nos celulares também mostram que Ana Laura usava como desculpa para convencer os advogados a "alugarem" os tokens a história de que era visada e perseguida na Procuradoria Geral do Estado (PGE), onde estagiou por um período, e que precisava ajuizar processos na Justiça em nome de terceiros para que os clientes não fossem prejudicados. Os pedidos de cessão dos tokens eram feitos pela própria Ana Laura e por outro advogado, que não foi indiciado.
Versões
Em depoimento na delegacia, Ana Laura afirmou que Gabriela nunca trabalhou em seu escritório e que apenas usava seu token para ingressar com ações na Justiça. Para o restante das perguntas, ela usou o direito de ficar em silêncio e só falar em juízo. Ela foi presa na época da operação e no começo de outubro conseguiu que a prisão fosse domiciliar.
Já Izabella afirmou que pediu demissão em julho deste ano e que até então não tinha conhecimento de nenhuma fraude, mas que tomou a decisão de sair do escritório ao desconfiar de possíveis irregularidades.
Ronaldo, que foi preso em 11 de outubro e conseguiu a liberdade nesta quarta-feira (30), afirmou à Polícia Civil que foi procurado por Ana Laura e Izabella em setembro de 2022 para ingressar como cliente delas com uma ação na Justiça para obter a isenção do IR por causa do acidente radiológico e que concordou. Na delegacia ele disse que não possuía nenhuma doença por causa do césio-137, mas que conseguiu mesmo assim uma liminar favorável em novembro de 2023.
O subtenente disse também que a partir de maio do ano passado passou a indicar possíveis clientes dentro da reserva da PM-GO para Ana Laura e que fez isso por um ano em troca de 10% do valor de um mês de isenção do IR do cliente.
As investigações do Garra/Deic tiveram início após dois médicos denunciarem que o nome deles estava sendo usado para falsificar laudos que atestavam contaminação de pessoas pelo césio-137. Durante o trabalho policial, foi descoberto mais um médico que teve o nome usado sem conhecimento.
Em 15 de outubro, o presidente do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (TJ-GO), o desembargador Carlos Alberto França, suspendeu temporariamente 644 ações que tramitam no Judiciário referentes a pedidos de benefícios envolvendo pessoas supostamente contaminadas.
O POPULAR não conseguiu contato, nesta quinta-feira (31), com os advogados de Ana Laura, Ronaldo, Izabella e Gabriela.