O desafio de mudar a si para encarar o drama das drogas dentro da família
Aos 67 anos, Elizabeth (nome fictício) se lembra de um tempo em que foi uma mulher vaidosa e dinâmica. Sente saudades da lida como costureira, mas não tem forças para voltar atrás depois que o filho, de 46 anos, tornou-se alcoólatra após o fim do casamento. "Não tenho mais paz, não cuido de mim, me afastei dos amigos e da família." A aposentada não está sozinha. Sem saber como lidar com situações de dependência de substâncias psicoativas, a tendência do familiar é adoecer junto. Na maioria das vezes, por preconceito e vergonha, pessoas como Elizabeth não buscam ajuda, embora elas existam na forma de grupos de apoio e ajuda mútua.
No final dos anos 80, a professora universitária Sônia França, mãe de três filhos, descobriu em Campinas (SP) o embrião da organização não governamental Amor-Exigente (AE). Uma vez por mês, fazendo malabarismo entre família e trabalho, seguia para o interior paulista para se aprofundar no programa comportamental. Ela precisava de respostas para saber como lidar com a dependência de drogas dentro de casa. "Um dos lemas do AE é 'nada muda se você não mudar'", diz ela, que em 1991 criou em Goiânia o primeiro grupo da ONG no Estado e ainda hoje está vinculada ao AE. Sônia traduz o AE como "um programa de qualidade de vida."
O testemunho da professora aposentada é impactante. Ela conta que buscou ajuda para enfrentar a dependência da filha mais velha, então com 17 anos. "Aprendi que o problema pode ser administrado para evitar que a família adoeça junto, para colocar limites e trabalhar o amor com exigência, não com medo, com frustração e com vergonha." Até se livrar do vício, a filha passou por internações, frequentou comunidades terapêuticas e teve recaídas. No início da pandemia, ela não sobreviveu à Covid-19. "Só depois de sua morte descobri que ela vinha ajudando outras pessoas, fazendo exatamente o que eu fazia com ela. O líder da igreja que minha filha frequentava me disse que ela tinha sido uma luz para muita gente. Não chorei mais."
Perita criminal aposentada, a farmacêutica Carmen Lúcia dos Santos Gomes coordena em Goiânia a regional do AE, onde é voluntária há 24 anos. "A família precisa ter qualidade de vida, cuidar de si e caminhar apesar do problema. O AE salva vidas", traduz. Ela descobriu o programa quando percebeu que um dos filhos, na adolescência, era dependente químico. "Hoje é um adulto, está bem, com desafios. O programa foi meu norte, meu fiel da balança", afirma. Goiânia, segundo ela, conta com cinco grupos ativos, com reuniões semanais e também on-line. A pandemia interrompeu atividades de outros dois. Diversos outros são atuantes no interior do Estado.
No Brasil, não é raro encontrar grupos de ajuda mútua que acolhem familiares de dependentes de substâncias psicoativas sem nenhum custo. Muitos deles ecumênicos, como é o AE, mas a frequência não é grande. Em geral, eles estudam 12 passos que contribuem para a mudança de ação. Carmen explica que muitas vezes o familiar não fica nao programa porque percebe que precisa mudar de comportamento. "Normalmente a pessoa quer que seu familiar mude, mas é ela quem precisa." Sônia França completa: "É necessário colocar limites, sem qualquer outro sentimento negativo que adoece a família. Quando a gente muda o jeito de lidar com o problema, as relações melhoram."
Elizabeth nunca procurou um desses grupos. Não se sente encorajada a isso. Sem dormir, deprimida e tentando aparar as arestas provocadas pela dependência do filho, ela buscou ajuda no centro de atenção psicossocial (Caps) perto de sua casa. "Estou tomando remédio controlado", afirma. Quando se depara com a embriaguez e a falta de cuidado do filho com a própria higiene, o ímpeto da aposentada é cuidar dele. "Ele chegou a ficar internado, mas bateram nele na clínica. Eu durmo e acordo pensando nele. Não tenho mais paz."
Amor-Exigente terá reunião aberta em novembro
No dia 10 de novembro, um domingo, a diretoria regional e voluntários da ONG farão uma manhã de estudos sobre o Programa Amor-Exigente (PAE) no Centro Catequético Nossa Senhora Aparecida e Santa Edwiges, na paróquia homônima, no Setor Nova Suíça, em Goiânia. As palestras começam às 7h30 e terminam às 12 horas. O encontro será aberto ao público em geral e os organizadores solicitam uma contribuição voluntária de 10 reais. Para conhecer mais sobre o PAE e descobrir a localização dos grupos e horários de reuniões, basta digitar https://amorexigente.org e acessar.
Outros grupos
- Grupos Familiares Al-Anon do Brasil - Vinculado ao Alcoólicos Anônimos (AA). Em Goiânia são cinco grupos atuantes com reuniões semanais. Eles também estão presentes em algumas cidades do interior, como Ipameri, Formosa, Mineiros e Cidade Ocidental. Para saber mais: https://al-anon.org.br
- Grupos Familiares Nar-Anon do Brasil - Vinculado ao Narcóticos Anônimos (NA): https://www.naranon.org.br
- Pastoral da Sobriedade - Vinculado à Igreja Católica. Em Goiás, há mais de 30 grupos atuantes em diversas localidades. http://www.sobriedade.org.br
O mundo enfrenta uma epidemia de dependência química
Divulgado em junho pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), o Relatório Mundial sobre Drogas 2024 mostra um crescimento do uso de drogas no mundo todo. A expansão de mercado e o surgimento de novos opioides sintéticos agravaram os transtornos associados ao uso dessas substâncias, além de danos ambientais. Em 2022, segundo o relatório, mais de 292 milhões de pessoas usaram drogas, um aumento de 20% em relação à década anterior.
Globalmente, conforme o UNODC, a maconha continua a ser a droga mais consumida (228 milhões de usuários), seguida dos opioides (60 milhões), das anfetaminas (30 milhões), da cocaína (23 milhões) e do ecstasy (20 milhões).
Dos cerca de 64 milhões de indivíduos que em 2022 sofriam de transtornos associados ao uso de drogas, apenas uma em cada 11 pessoas recebeu tratamento. Os nitazenos, grupo de opioides sintéticos potentes que surgiu recentemente, vêm provocando aumento no número de mortes por overdose.
Nesse cenário, o documento destaca o direito à saúde como um direito humano reconhecido internacionalmente que pertence a todos os seres humanos -- o que se aplica igualmente a